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Autogestão ou gestão: sobre a liderança tácita nos coletivos autônomos – ou sobre coletivos autônomos nem tão autônomos assim

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Ao substituir os espaços coletivos por espaços privados, a militância perdeu sua característica de solidariedade, dando vazão ao individualismo e a práticas conservadoras.

11/04/2019

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Matter of Identity I 1963 Bernard Cohen born 1933 Purchased 1972 http://www.tate.org.uk/art/work/T01535

Por Mo Lotov

Ultimamente, muito tem se discutido sobre o fim do que entendemos hoje como “coletivos autônomos” (ver aqui e aqui). Os debates promovidos, acerca deste tema, têm enormes limitações e que não poderia, aqui, esmiuçar todas elas. O problema central desse debate é que o que se atribui como fator preponderante para que os tais “coletivos autônomos” acabem é justamente o identitarismo. Ora, o identitarismo enquanto ideologia e movimento corrobora para o fim dos tais coletivos, mas não pode ser considerado o único fator para que esses coletivos deixem de existir. A proposta desse texto é justamente tratar sobre um dos outros fatores para que os “coletivos autônomos” acabem.

A questão da liderança tácita, por vezes, é ignorada ou excluída do debate dentro desses coletivos. O problema que nasce dessa questão é que dentro dos coletivos autônomos existem dois setores e a partir destes é possível analisar conjunturalmente o seu poder nocivo ou como se dá a prática desse coletivo frente às lutas e internamente.

Em último ponto, proponho também uma crítica ao anti-identitarismo exacerbado e que não avança na prática para além da crítica. O anti-identitarismo como pior produto do identitarismo e, para isso, me arrisquei em algumas bibliografias disponíveis para esmiuçar ainda mais essa questão.

Não basta somente dizer que o identitarismo é nocivo aos trabalhadores e à militância política, mas, além disso, entender que existem questões de violência interna, seja dentro da classe trabalhadora ou dos coletivos autônomos. Nisso, não pretendo me pautar com mais ênfase, pois já foi apresentando em outro texto disponível aqui, mas apenas refletir sobre como o anti-identitarismo exacerbado não propõe nada concreto — talvez por não se prestar à proposição ou simplesmente por não vislumbrar uma alternativa no horizonte.

A questão central é analisar de que forma se organizam essas “lideranças” dentro dos coletivos autônomos, por que surgem e qual seu potencial político. Identitárias ou “proletárias”, essas tais lideranças tendem a se tornar nocivas para o coletivo, a partir do momento em que assumem essa posição, seja de forma explícita ou implícita. Também é preciso pensar o que chamamos de coletivos autônomos, de autonomia etc. Criou-se uma confusão generalizada e que, de forma concreta, acaba jogando no “mesmo saco de gatos” coisas totalmente diferentes.

Gestão ou Autogestão?

Por tendência, os movimentos e coletivos autônomos têm, por traços gerais de organização, a horizontalidade, a coletivização das tarefas, a independência frente a partidos, sindicatos ou quaisquer outras organizações burocráticas.[1] O termo que usamos hoje como “autônomo” já foi usado anteriormente para definir militantes que não estavam integrados às juventudes da burocracia eleitoral ou organizados em algum coletivo de tendência leninista, stalinista ou maoísta. Esses militantes até então eram chamados de “independentes”, pois se encontravam de fora das estruturas hegemônicas de organização.

Em síntese, os coletivos “autônomos” reuniam anarquistas, marxistas libertários e heterodoxos, que até então eram marginalizados nas lutas que eram travadas por não terem um espaço de organização e formação conjunta. Hoje, o que podemos constatar em alguns coletivos e movimentos autônomos é a existência de uma espécie de direção. O leitor pode pensar nesse momento que houve um equívoco em minha última colocação — acerca da existência de líderes ou dirigentes presentes no campo autônomo. Porém, o que pôde ser analisado na maioria dos coletivos é que existem pessoas que possuem uma maior influência sobre os outros ou, então, uma espécie de legitimidade maior sobre o restante do movimento ou do coletivo.

O problema apresentado nessa questão é que, de forma indireta, esses indivíduos tem uma maior propensão para guiar o restante do coletivo para propostas em que, ou ele mesmo faz, ou vá de encontro às suas pretensões pessoais. Esse guincho feito por essas forças, dentro dos coletivos e movimentos autônomos, acontece não na forma da disputa política clássica, mas por se tratar desses indivíduos que na maioria das vezes são mais carismáticos ou possuem uma interação maior no campo da militância autônoma. Esse não seria um problema, já que teoricamente se espera que o debate de propostas seja feito, mas em caso específico o que se constata é que o debate de questões fundamentais para que a “força vital” dos coletivos permaneça é minimizado em detrimento dessas forças. Como se a permanência e a força política desses indivíduos fossem as únicas coisas capazes de permitir a existência desses coletivos ou, até mesmo, sua continuidade.

Dentro disso, é possível observar que começam a surgir dois polos dentro de um mesmo coletivo, e que é possível que nestes se aloquem duas forças fundamentais[2] para que esse coletivo “autônomo” continue sua existência. A disputa agora não é mais para construir uma pauta que tenha relação com a vida concreta ou que dialogue melhor para com a classe trabalhadora, mas sim a quase degladiação de militantes para ver quem pode mais.

Os “novos” coletivos autônomos, a partir dessa dinâmica de forças pré-existentes (no sentido de que na maioria dos casos essas forças não se assumem como tal), tomam a forma de toda espécie de anomalias possíveis. A relação de forças nesses ambientes tende a acirrar-se cada vez mais, até que essa existência conjunta se torne problemática ao ponto em que a conjuntura do coletivo favoreça a força majoritária e esta, para pôr um fim a essa disputa de forças e se tornar hegemônica, organiza-se para expurgar o campo minoritário e ter novamente o controle tácito (ou não) do coletivo.

Por outro lado, a força minoritária pode encontrar formas de ascender à liderança de determinado coletivo ou movimento. Na maioria dos casos, o trashing é a ferramenta mais utilizada. Primeiro, instaura-se um processo de monitoramento da vida pessoal e das relações sociais estabelecidas pelas forças políticas majoritárias. Posteriormente, ao encontrar algo que pode ser motivo de trashing para o movimento identitário, entregam a cabeça desses indivíduos, para que seja sacrificada nos meios militantes e nas mídias sociais. Dessa forma, desqualificam todas as posições políticas desses indivíduos, em detrimento da consolidação da força política, da ascensão à liderança desses coletivos ou movimentos. Para isso é usada a velha retórica leninista e tudo que há de mais baixo.

O debate político, as mudanças de concepção ou as divergências teóricas pouco aparecem nesse processo, mas na maioria das vezes estas duas últimas tendem a ser os reais motivos para os “rachas” dentro da maioria desses coletivos. É preciso esclarecer para que não surjam equívocos, mas, aliadas a essa ação de busca pela hegemonia de uma força política e às disputas que acontecem no interior desses coletivos pela liderança, é que as mudanças de concepção e as divergências teóricas acirram-se e tendem a ser usadas como motivo para os rachas, além dessa dinâmica das relações de poder dentro desses coletivos e movimentos autônomos.

Para que isso aconteça de forma efetiva, três coisas precisam estar colocadas na dinâmica desses coletivos e movimentos autônomos:

1. Quando uma das forças agrupa a maioria dos militantes em torno de si e, a partir disso, tende a direcionar o coletivo ou o movimento para onde melhor lhe aprouver.

2. Casos de violência interna como, por exemplo, racismo, LGBTfobia e violências entre militantes que podem ser usados na prática do trashing e que a militância identitária usa como motivo para a instauração de “tribunais”. Para essa questão só há dois caminhos possíveis, e ambos podem apresentar tendências tóxicas para o coletivo: ou se “resolve” a questão do ponto de vista identitário — que não tem base concreta alguma —, ou então encontram formas de lidar com essas questões, tendo em vista que o coletivo, o movimento ou, até mesmo, a esquerda não está desintegrada do restante da sociedade. O que vem dessa proposta pode ser trágico, mas igualmente necessário. Os militantes precisam estar cientes de que tomando essa via anti-indentitária, sofrerão todo o tipo de violência por parte do movimento identitário. Ainda existe outra alternativa, que tem sido adotada na maioria das vezes, quando existe a disputa extra movimento: se propõe uma resolução de fato concreta que esteja em negação ao identitarismo, mas ao passo que por consequência não consegue apontar as concepções de uma nova realidade social e com relações sociais novas. A segunda alternativa aponta para um horizonte ainda desconhecido e de questões ainda não resolutas (mesmo que de forma aparente), mas talvez seja a proposta menos drástica para a toxicidade dentro dos coletivos. Para ela, é preciso um esforço no sentido de ser construir coletivamente uma alternativa que seja de fato concreta e eficiente no sentido de gerar consciência política.

3. Em concomitância com os pontos apresentados anteriormente para que as forças políticas presentes nesses coletivos e movimentos autônomos rachem, este talvez seja um dos motivos fundamentais. A partir do momento em que as forças políticas se organizam para hegemonizar o movimento e, por sua vez, dirigi-lo, as denúncias de violência interna e as tensões pessoais entre militantes tendem a acirrar-se.

A separação entre disputas políticas e pessoais deixa de existir e em seu lugar surge uma espécie de “pessoalismo” que tenciona as relações entre militantes, não mais por causa de disputas de concepção e de prática para com as lutas, mas em intrigas pessoais e que em maioria não têm relação direta com as divergências teóricas no seio do movimento autônomo. Para esta, ainda não é possível apontar um caminho que seja eficiente, já que nesse momento o coletivo ou o movimento está em crise e se minimiza o debate sobre as divisões entre o político e o pessoal. O que geralmente é feito é contrário ao debate, no sentido de se construir uma alternativa ou chegar a um consenso coletivo. A falta disso corrobora para que as tensões pessoais cheguem a um nível onde se torna insuportável a coexistência de militantes num mesmo coletivo ou movimento.

A partir disso, um racha se torna algo iminente, e geralmente o grupo majoritário tende a jogar no ostracismo quem não se agrupou em derredor. Isso é feito de diversas formas e é possível chegar aos níveis mais baixos da retórica leninista e da política identitária.

O anti-identitarismo como pior produto do identitarismo

Nesses ambientes, geralmente, é onde o identitarismo se aflora, e quando isso acontece os coletivos deixam de exercer sua função política e se direcionam para a resolução de questões internas e que, na maioria das vezes, são também uma questão de classe.

Em momentos de refluxo das lutas é quando essas questões aparecem (ver aqui e aqui) com mais ênfase e, dependendo da força política que mais tenha legitimidade perante o coletivo, é que será determinado de que forma essas questões serão resolvidas. Quando o identitarismo não é um problema dentro desses coletivos o seu pior produto surge — e surge a partir das deficiências políticas desses militantes.

Os “anti-identitários”, na maioria das vezes, tendem a não conseguir construir uma alternativa para além das vias identitárias e punitivistas. Nesses espaços, por deficiência na formação, é que uma vasta gama de questões é incluída ou minimizada, por serem entendidas como pautas identitárias. Sobre essa questão, Dantarez recentemente publicou um texto dizendo que “quando um movimento identitário, por mais que contraditório, se articula para reivindicar salários melhores para mulheres de certa categoria, por exemplo, ou para as questões relativas à saúde da mulher, ou sobre como os negros saem atrás na própria busca por um emprego por conta de sua cor, enfim, esses movimentos, apesar de suas contradições, conseguem promover avanços em objetivos específicos e, muitas vezes, imediatos, como criticá-los ou dizer que sua atuação cria uma ‘fragmentação’ na ‘classe trabalhadora’ quando a própria noção de luta da classe parece vaga?”. Ir além da crítica vazia ao identitarismo me parece ser uma questão demasiadamente importante. Ora, não pretendo fazer uma defesa do identitarismo, mas precisamos observar como esses movimentos se organizam na defesa das pautas “classistas” e aprofundar o debate em torno dessas relações.

Se os pressupostos estão dados, aceitemos! Mas se, por outro lado, pensarmos os movimentos identitários como movimentos oriundos desse novo ciclo do capitalismo poderemos avançar também no sentido de construir alternativas às políticas punitivistas e fascistas desses movimentos.[3] De forma clara, os movimentos identitários propõem formas de lidar com as violências, mesmo essas formas sendo questionáveis e totalmente tóxicas. O que podemos fazer em contrapartida? Precisamos pautar o debate de como lidar com essas questões e me parece que a construção ou retomada da solidariedade de classe é uma das alternativas. Ao substituir os espaços coletivos por espaços privados, a militância perdeu sua característica de solidariedade, dando vazão ao individualismo e a práticas conservadoras.

O anti-identitarismo torna-se o pior produto de identitarismo, pois este se fecha a uma perspectiva que pouco avança — a de que as pautas identitárias em sua totalidade são nocivas e fragmentam os trabalhadores. Dessa forma, questões pertinentes são abandonadas, dando lugar ao limbo e, por sua vez, fragilizando os coletivos e movimentos. O anti-identitarismo deve, por sua vez, atentar-se a essas singularidades, pensando em práticas alternativas ao movimento identitário e, sobretudo, resgatar seu caráter anticapitalista.

Reflexões Finais

O que chamam vulgarmente hoje de esquerda é, na verdade, o arcabouço do que mais existe de conservador. Substituímos os espaços de solidariedade por espaços de disputa cruel e irresponsável, que, além da exclusão e da mutabilidade, tendem a deixar os militantes com sérios problemas psicológicos.

A lógica é dada pelas velhas disputas de liderança — ou por quem pretender se tornar —, sejam elas instituídas pelo coletivo, de forma legal e legítima, ou de forma tácita. O somatório desses expoentes resulta, muitas das vezes, em rompimentos que estão imbuídos de linchamentos. A utilização desses métodos serve, principalmente, para que indivíduos sejam elevados à posição de liderança dentro de um determinado movimento.

Chega um momento onde se torna necessário abandonar a perspectiva utópica de que a esquerda é um lugar “santo” e que ela está separada do restante da sociedade. Tenho pensado, nos últimos meses, que é necessário resgatar determinadas coisas para que seja minimamente viável continuar naquilo que chamamos de militância.

A solidariedade é algo que perdemos há muito. É inegável que a ausência de solidariedade entre nós e de nós para com os trabalhadores se transformou num sentimento de mágoa, pois os “nossos” não estão no poder. Essa ausência de solidariedade se perdeu há muito e o reflexo dela é a nossa incapacidade de apoiarmos a luta de trabalhadores que não estão vinculados de alguma maneira aos interesses da esquerda.

A crítica ao identitarismo deve ser radical, mas precisamos ter em mente questões lógicas a respeito desse movimento. Aqueles que se propõem a ser anticapitalistas devem levar essa perspectiva até as últimas consequências.

As imagens que ilustram o artigo são de Bernard Cohen e, com exceção da última, fazem parte da série “Matter of Identity”

Notas

[1] Para uma melhor compreensão da autonomia, autonomismo e movimento autônomo, recomendo a leitura da série Reflexões sobre autonomia, disponível aqui.

[2] É preciso esclarecer, para que não surjam equívocos, que no primeiro momento não existe uma divisão muito clara das forças políticas existentes no mesmo coletivo. Dessa forma, as disputas são travadas para negar a força que majoritária. posteriormente, com o acúmulo de forças, as disputas por lideranças tendem a acirrar as relações dentro de um coletivo ou movimento.

[3] A relação entre fascismo e movimento identitário pode ser melhor compreendida a partir de: BERNARDO, João. O fascismo pós fascista. In. BERNARDO, João. Labirintos do Fascismo. 2ª versão, Disponível aqui.