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Classe / identidades

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Hoje, quando se trata de começar, a partir do seu nível mais baixo, um novo ciclo de lutas, é indispensável distinguir a política de classe e a política de identidades, sem supor que uma possa aliar-se à outra.

20/03/2019

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Por João Bernardo

A classe trabalhadora pode ser definida no plano económico ou no plano sociológico. É indispensável não confundir estes dois planos.

Eu defino o tempo como a substância do capitalismo, porque a mais-valia, ou seja, o processo de exploração, ocorre no tempo e resulta de contradições operadas no tempo. Aqueles que controlam o seu próprio tempo de trabalho, ou participam nesse controle, e simultaneamente controlam o tempo de trabalho alheio constituem as classes exploradoras (burgueses e gestores). Aqueles que não controlam o seu próprio tempo de trabalho nem o tempo de trabalho alheio constituem a classe trabalhadora. Aqueles que controlam o seu tempo de trabalho e não controlam o tempo de trabalho de mais ninguém são exteriores ao modo de produção capitalista, com o qual se relacionam apenas através do mercado (artistas, artesãos individuais e o que resta das velhas profissões liberais).

Neste plano económico a classe trabalhadora tem uma existência permanente e verificável. A Gestão dos Recursos Humanos está no centro das preocupações de qualquer patrão ou administrador, e falar de «recursos humanos» é simplesmente um eufemismo para não dizer «classe trabalhadora».

Quem ler as análises publicadas pelos teóricos e pelos técnicos do capitalismo sobre os sistemas de produção e os desafios colocados à administração de empresa depara inevitavelmente com a classe trabalhadora. Nenhum estudo económico pode ser feito sem a ter em conta. Os conflitos que ocorrem nas relações de trabalho, desde os mais passivos e individuais até aos mais activos e colectivos visam, ou pelo menos têm como efeito, perturbar ou interromper o fluxo do tempo de trabalho. E as técnicas de administração visam, no fundamental, evitar ou antecipar as insatisfações e os movimentos reivindicativos, de modo que o tempo de trabalho possa fluir sem interrupções. É este o antagonismo interno que se verifica no tempo enquanto substância do capitalismo, e é neste plano que a classe trabalhadora manifesta permanentemente a sua existência.

No plano sociológico, porém, a classe trabalhadora nunca conseguiu ter uma existência permanente. Os trabalhadores só tomam consciência da sua realidade enquanto classe quando enfrentam activamente a globalidade dos capitalistas. Só neste confronto a classe trabalhadora pode existir no plano sociológico.

Em 1846-1848 a classe trabalhadora assumiu uma existência sociológica no âmbito europeu, desde as ilhas britânicas até ao sul da Itália, desde Portugal até à Polónia repartida. A classe trabalhadora voltou a assumir uma existência sociológica num âmbito mais vasto, incluindo toda a Europa e os Estados Unidos, desde os anos finais da primeira guerra mundial até ao início da década de 1920. Mais recentemente, e já num âmbito mundial, a classe trabalhadora assumiu de novo uma existência sociológica desde a década de 1960 até à década de 1980. Poucos sabem hoje, ou desejam recordar, mas foi então que nós estivemos à beira de vencer, como escrevi em «Epílogo e prefácio (um testemunho presencial)».

Nessa época o capitalismo estava enleado na última das suas crises económicas estruturais, e a unificação internacional da classe trabalhadora no plano sociológico parecia tornar iminente a conversão dessa crise estrutural numa crise terminal. Mas a situação inverteu-se, e nas últimas décadas um capitalismo globalizado manipula sem grandes dificuldades os trabalhadores fragmentados e dispersos. «O capitalismo pressupõe a produção de especialistas e a balcanização do conhecimento», salientou Paul Morrison; «a eliminação ou demonização de qualquer perspectiva global pode apenas servir os interesses de uma ordem económica que ela própria se define pelo globalismo» (The Poetics of Fascism. Ezra Pound, T. S. Eliot, Paul de Man. Nova Iorque e Oxford: Oxford University Press, 1996, pág. 14). Hoje a classe trabalhadora não existe no plano sociológico.

A hegemonia adquirida pelos identitarismos no plano sociológico e ideológico é a expressão directa do desaparecimento da classe trabalhadora nesse plano. Esta hegemonia é tão completa que a esquerda — ou aquilo a que a desnaturação do vocabulário continua a chamar esquerda — apresenta os trabalhadores como uma outra identidade, que eventualmente se pode acoplar às demais. O desaparecimento sociológico e ideológico dos trabalhadores enquanto classe e a sua inserção no xadrez das identidades representa a maior vitória do identitarismo.

A afirmação de identidades reproduz todos os vícios do nacionalismo. Tal como Paul Valéry preveniu em 1931, numa época em que os nacionalismos se tornavam deveras ameaçadores, «A História é o produto mais perigoso que a química do cérebro elaborou. As suas propriedades são bem conhecidas. Faz sonhar, embriaga os povos, gera-lhes falsas memórias, exagera-lhes os reflexos, nutre-lhes as velhas mágoas, atormenta-os no repouso, condu-los ao delírio das grandezas ou ao da perseguição e torna as nações amargas, arrogantes, insuportáveis e vaidosas» (Regards sur le Monde Actuel et autres Essais. Paris: Gallimard, 1945, pág. 27). Tudo isto se pode hoje dizer acerca do identitarismo.

Mas os nacionalismos, pelo menos, referiam-se a fronteiras fixas, enquanto as identidades, reais ou presumidas, projectam a sua histeria em horizontes indefinidos, já que se reivindicam de limites fluidos, sobreponíveis e, aliás, subjectivos. E assim como o nacionalismo assumiu as formas mais extremas — e também mais delirantes — no racismo, em que numa dança de roda se passava dos aspectos culturais para os biológicos e dos biológicos para os culturais, também os identitarismos fazem o mesmo, tanto os de género como os de cor de pele ou de sexo ou de qualquer outra coisa. Há já muitos anos eu mostrei que a oscilação entre biologia e cultura no nacional-socialismo tem uma estreita afinidade com idêntica oscilação característica da forma moderna de feminismo. O mesmo se deve dizer de um movimento negro capaz de defender que «Miscigenação também é genocídio» e que invoca os fenótipos com o mesmo afã com que os invocaram os cultores das raças. Os identitarismos reproduzem não só as formas mais perversas do nacionalismo, mas também a forma mais perversa dos fascismos, o racismo nacional-socialista.

Todavia, o aspecto principal que as novas identidades têm em comum com o velho nacionalismo é o carácter supraclassista. Enquanto que a afirmação da classe trabalhadora no plano sociológico rompe, ou visa romper, a sociedade horizontalmente, marcando com clareza a clivagem entre os que produzem mais-valia e os que se apropriam dela, o nacionalismo e o identitarismo reúnem trabalhadores e capitalistas em torno de um mito comum, ou geográfico ou cultural e biológico.

Ora, qualquer forma de união entre exploradores e explorados tem como efeito imediato consolidar o processo de exploração. A história mostrou-o abundantemente no caso dos nacionalismos. No caso dos identitarismos verificamos o mesmo resultado com a política de cotas, que mobiliza massas de pessoas de uma dada identidade, ou presumida identidade, para promover a ascensão social de um número reduzido dessas pessoas, convertendo-as em nova elite ou inserindo-as na elite já existente. Assim como a expansão territorial obtida por meios militares era o resultado lógico dos nacionalismos, a promoção de elites graças à política de cotas é o resultado lógico dos identitarismos.

É certo que na vida corrente as coisas aparecem confusas, nos conflitos do dia-a-dia, na convivência das cervejarias. Quem se limite a viver no meio da confusão não sabe desembaraçar-se das dificuldades. Mas a função da ciência, e do seu equivalente na política, é precisamente a de simplificar e cortar a direito. O problema é que hoje praticamente só existem dois tipos de marxismo: o marxismo pré-galilaico e o marxismo esponja.

Quanto ao primeiro, tal como os opositores de Galileo se recusavam a espreitar pela luneta para ver os satélites de Júpiter e continuavam fiéis à cosmografia grega, também estes marxistas se recusam a ver as estatísticas e bastam-lhes os textos do mestre. Desapareceram assim do reino dos vivos e foram para o museu das múmias.

O marxismo esponja, por seu lado, absorve tudo aquilo que as marés lhe trazem. A operação vocabular é simples, colando-se o adjectivo «marxista» a qualquer tipo de identitarismo. A operação política é mais complicada, porém, e tem os mesmos efeitos que teve, entre as duas guerras mundiais, a colagem do marxismo aos nacionalismos, que por um lado precipitou massas trabalhadoras em apoio ao fascismo, e por outro lado apressou a degenerescência extrema do marxismo que foi o stalinismo.

Hoje, quando se trata de começar, a partir do seu nível mais baixo, um novo ciclo de lutas, é indispensável distinguir a política de classe e a política de identidades, sem supor que uma possa aliar-se à outra.

O artigo foi ilustrado com máscaras da coleção do Museu Nacional de Etnologia (Portugal).